Projeto resgata cidadania de mulheres em vulnerabilidade e doa máscaras

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Kizy Kaoana, 38, trabalhava numa perfumaria em Santo André (ABC). Com diabetes, foi afastada da função durante 20 dias no início da pandemia e depois dispensada. O estabelecimento faliu e não pagou os funcionários. Solteira, vive com o filho de 11 anos no Jabaquara (zona sul de São Paulo) e sofreu até conseguir um novo emprego. “As pessoas são preconceituosas e te olham diferente porque você é gorda, negra, mãe solteira, imigrante, ex-presidiária. O racismo é uma doença”, afirma. Ela é uma das 46 mulheres que trabalham no projeto #EuCuido. A iniciativa do Hospital Albert Einstein, Sistema B, Din4mo, Grupo Gaia, Blend e Movimento EuVistoOBem, emprega detentas, egressas do sistema prisional, imigrantes e refugiadas em duas oficinas de costura. O movimento não tem fins lucrativos. Uma unidade do projeto funciona dentro do CPP (Centro de Progressão Penitenciária) Feminino “Dra. Marina Marigo Cardoso de Oliveira” do Butantan e a outra num galpão na Vila Leopoldina (zona oeste). “As pessoas chegam ao movimento sem sonhos, perspectivas e nem vontade. Saem transformadas, com visão de futuro e objetivos concretos”, afirma uma das gestoras do movimento, Luciana Leal, 33. Segundo a fundadora do movimento, Roberta Negrini, 42, as máscaras produzidas são vendidas nas drogarias São Paulo e Pacheco, no Empório Santa Maria e nas lojas da rede St Marche. As redes compram as máscaras por R$ 7,50 a unidade e comercializam a R$ 13. Há a venda também através do site do projeto www.eucuido.org.br. Na plataforma, a unidade custa R$ 13 (compre 1 e doe 1) e R$ 6,50 se quiser apenas doar. Até o fechamento da reportagem, o movimento havia doado 43.690 máscaras. A meta é chegar a 500 mil. Pessoas físicas e jurídicas, e instituições de todo o país podem participar da ação. Para doar, não há quantidade mínima. No caso de compra e doação, cada pessoa deve adquirir pelo menos 20 peças. Destas, dez são direcionadas a um estoque para doação. O montante deverá ser múltiplo de dez. O Grupo Gaia é o responsável pela distribuição das peças às instituições cadastradas no site— cerca de 40 foram beneficiadas. As doações direcionadas, ou seja, caso a pessoa desejar indicar a entidade que receberá as máscaras, só podem ser feitas se a compra for de grandes quantidades. Até o momento, cerca de 50 mulheres já passaram pelo projeto. Atualmente, o #EuCuido tem 46 trabalhando, sendo 24 no presídio. Além de brasileiras, há imigrantes da Bolívia, Venezuela e do Congo. Um grupo fica responsável pela costura e outro no controle de qualidade, onde o produto é limpo, higienizado, embalado e encaixotado para a destinação final. O tecido utilizado é sustentável, da EcoSimple, cuja fabricação é feita com polímeros de reciclagem de garrafas pet e algodão orgânico. O Movimento #EuCuido teve início em abril e não tem prazo para terminar. O projeto estuda a confecção de uniformes escolares e máscaras para a volta às aulas com tecnologia HeiQ Viroblock. Os modelos estão em processo de desenvolvimento. A ideia inicial é que uma escola privada doe para uma pública. A reportagem visitou a oficina do #EuCuido da Vila Leopoldina. O ambiente segue o protocolo de cuidados que devem ser tomados para prevenir a infecção pelo novo coronavírus, como uso de máscaras, de álcool gel e distância de pelo menos 1,5 metro entre as pessoas. Residente na Mooca (zona leste), antes da pandemia trabalhava em uma loja do Brás (centro). Ficou desempregada e conta que não recebeu o salário do último mês que havia trabalhado. Há dois anos, o filho João Leandro, 7, faz tratamento contra leucemia na Tucca (Associação para Crianças e Adolescentes com Câncer). A última sessão de quimioterapia está marcada para 28 de agosto. Sem dinheiro para o sustento da família e com aluguel e dívidas em atraso, Olívia procurou emprego. Através de uma rede social ficou sabendo da oportunidade no projeto. Dois meses de trabalho foram suficientes para colocar as contas em dia. Além disso, ela ajuda o pai, que mora na Bolívia e tem problemas de saúde. “As pessoas, ao comprar uma máscara, não imaginam que cada peça é confeccionada por mulheres que têm histórias e por trás delas há famílias, mulheres que se encontram em situação crítica. As pessoas não compram só uma máscara, mas a esperança e o sonho de cada costureira, de ter um salário e trabalhar por algo digno. Estou muito feliz aqui, porque sou tratada com dignidade, respeito e amor”, afirma Olívia. No #EuCuido, é feito um contrato de prestação de serviços por três meses, que pode ser prorrogado ou não. Do grupo, três mulheres estão no regime CLT, porque já trabalhavam no Movimento EuVistoOBem, um dos parceiros. Até o final de agosto, outras serão efetivadas. É o caso de Olívia. A ideia é que todas permaneçam no movimento como funcionárias fixas. ​As costureiras recebem R$ 1 por máscara produzida. Neste caso, o salário mensal pode ficar entre R$ 2.000 e R$ 2.500 mensais. As demais têm remuneração de R$ 1.200 mais R$ 300 de ajuda de custo. O psicanalista Giovanni César Silva, 59, faz atendimento gratuito no local uma vez na semana. Segundo ele, muitas estão em sofrimento e são extremamente vulneráveis, do ponto de vista emocional e mental, com traumas de infância. “Quase todas passaram por violência sexual na infância, tentativa de suicídio, conflitos familiares com histórico de agressão por parte dos companheiros. Aqui não dá para ser apenas técnico e freudiano. É necessário que elas percebam que há alguém que pode ajudá-las”, explica Silva. O preconceito também persegue as egressas do sistema penitenciário. Paloma Eulina dos Santos, 28, de Guarulhos (Grande SP), usou crack e morou nas ruas durante nove anos. Condenada por roubo, ficou seis anos e dois meses presa em Franco da Rocha (47 km de SP) e na penitenciária feminina, em Santana (zona norte). Os gêmeos Pedro e Matheus, hoje com três anos, nasceram enquanto estava na cadeia. Santos ganhou a liberdade em 2017 e saiu com dois únicos objetivos: dedicar-se aos filhos e resgatar os sonhos perdidos. Paloma atua no #EuCuido no controle de qualidade. Com dificuldade para conseguir emprego por ser ex-detenta, segundo ela, foi encaminhada ao movimento pelo projeto Responsa. Segura de que se curou sozinha do vício, Paloma pensa em cursar faculdade na área de logística. “Hoje, eu olho para os meus filhos e penso que eles são o meu tratamento”, diz. Em 2009, a paranaense Marcela Alexandre, 33, de Mauá (Grande SP), foi presa por associação ao tráfico e tráfico de drogas numa operação policial no Paraná. Cumpriu pena de 11 anos, em Foz do Iguaçu (PR) e nas penitenciárias femininas de de Tupi Paulista (646 km de SP), Santana e no CPP Butantan. Alexandre chegou ao projeto através do movimento #EuVistoOBem. À reportagem, ela contou que restabeleceu os laços de confiança e a convivência com as outras mulheres a fez crescer. Seu sonho é ser enfermeira. “O ambiente de trabalho faz com que elas se sintam pessoas que merecem dignidade, respeito e cuidados. Ouço muito elas dizerem que voltaram a sonhar após o engajamento no projeto. O fato de terem perspectivas para o futuro é transformador. O maior apoio que podemos dar é permitir que essas mulheres andem com as próprias pernas”, afirma Negrini. * Como funciona? A instituição que precisa de máscaras faz o cadastro no site www.eucuido.org.br Pessoas físicas ou jurídicas acessam a plataforma e fazem a doação Mulheres costuram as máscaras, limpam, higienizam, embalam e encaixotam para a destinação final Instituição parceira recebe as máscaras prontas para uso Máscaras são entregues junto com as orientações de como usar Se você comprou, também recebe a (s) sua (s) Como ajudar? É possível ser um voluntário do projeto. Profissionais com vontade de aplicar seus conhecimentos na área de desenvolvimento de pessoas são bem-vindos para cursos ou palestras. Interessados devem escrever para roberta@euvistoobem.com.br

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